quinta-feira, 2 de julho de 2015

OS NINGUÉNS

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não têm cultura, e sim folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

(O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano, página 71)

domingo, 21 de junho de 2015

Parando de tomar anticoncepcional: primeiras impressões.

Faz mais ou menos um mês que decidi parar de tomar anticoncepcional. Tomei a pílula por sete anos. Nos primeiros três anos usava a marca "Gracial", nos últimos quatro tomei a "Dalyne". A decisão de parar foi motivada por duas questões: a primeira foi a série de textos e matérias que li sobre os efeitos colaterais e complicações futuras que o uso de anticoncepcionais tem causado em muitas mulheres. Além das leituras, obtive muitas informações importantes através de relatos de várias mulheres em alguns grupos do Facebook (depois divulgo os que considero mais importantes). A segunda questão foi pessoal, relacionada ao "escape", um efeito colateral que o uso da pílula estava causando em mim. Nos últimos meses tomando anticoncepcional eu estava sangrando frequentemente, não só no período da menstruação. Antes de tomar essa decisão fui a ginecologista para investigar quais eram os efeitos desse sangramento. A médica pediu uma bateria de exames de sangue, urina e ecografias. No fim, de acordo com ela, meu sangramento era causado pelo uso do anticoncepcional, pois ele estava afinando a parede que recobre o útero (endométrio), causando um "descolamento" contínuo. A médica me disse que isso era normal, devido ao tempo de uso da pílula, e que eu não deveria me preocupar e poderia continuar usando-a normalmente. Como não me preocupar com um sangramento que estava durando 15 dias e me incomodava tanto? Como não me preocupar com minha saúde e a quantidade de hormônios que estava ingerindo, sem saber se realmente era necessário? Difícil...

Diante dessa realidade, optei pela decisão de parar com anticoncepcional. Agora, depois de um mês e estando menstruada novamente, decidi escrever esse texto contando as primeiras impressões que pude notar nesse tempo. Antes de tudo, quero deixar claro que essa é uma decisão pessoal, baseada naquilo que eu estava sentindo e também naquilo que acredito. Sei que existem mulheres que precisam do anticoncepcional por questões de saúde e não acho que devemos "crucificar" a pílula pura e simplesmente, sem uma análise séria de seus efeitos e também dos benefícios que ela pode trazer em determinados casos. 

Exposto isto, listarei os pontos que acredito serem mais relevantes de tudo que li, vivi e senti nesse primeiro mês. 

Conhecimento sobre meu ciclo e relação com meu corpo: antes mesmo de parar de tomar o anticoncepcional comecei a ler sobre ciclos, período fértil, ovulação e menstruação. Incrível como não sabia praticamente nada sobre o meu ciclo e o funcionamento do meu corpo. Não vou dizer que agora já me conheço por inteira, porque isso não seria verdade, ainda estou num processo de observação e aprendizado e esta tarefa não é tão simples quanto parece. No entanto, com a ajuda dos grupos do Facebook, dos relatos de mulheres maravilhosas e de um aplicativo para celular, pude entender um pouco melhor sobre quando poderia estar em meu período fértil, quando ovularia e, possivelmente, quando minha menstruação viria. Importante ressaltar que nos primeiros meses sem o uso do anticoncepcional, quando usamos ele por alguns anos, nosso ciclo dificilmente fica regulado quando interrompemos seu uso, o que pode dificultar a observação da fertilidade e da ovulação, bem como prever quando será a próxima menstruação. Por sorte meu ciclo permaneceu regular nesse primeiro mês, com apenas dois dias de atraso para vinda da menstruação. Os grupos do Facebook comentados acima são: Contraceptivos - Trocando Experiências e Percepção da Fertilidade e Contracepção Natural. O aplicativo que estou utilizando é o "Meu Calendário". Gosto dele porque, além de estar em português, permite a anotação de sintomas, variações de humor, relações sexuais (protegidas ou não), entre outras coisas que podem auxiliar na percepção sobre como funciona nosso corpo e como se comporta nosso ciclo. Além disso, a partir do cálculo de duração do ciclo, ele prevê quando, possivelmente, será nossa próxima menstruação. Cabe destacar que não considero o "Meu Calendário" um método contraceptivo (ele se assemelha a famosa "Tabelinha"), pois nossos corpos sofrem diversas influências todos os meses, que podem afetar na duração de nosso ciclo. O aplicativo serve como uma base para que eu possa saber o que está acontecendo com meu corpo, bem como, anotar características que poderão ser comparadas ao longo dos meses. 




Métodos contraceptivos: eu namoro há um bom tempo e há um bom tempo também não usava camisinha. Antes de parar de tomar o anticoncepcional também tive que pesar de que forma meu companheiro e eu lidaríamos com a prevenção de uma possível gravidez, visto que no momento não planejamos ter filhos/as. O primeiro método, prático e de fácil acesso, foi a camisinha. Segui as dicas das mulheres que participam dos grupos citados acima e fui logo comprando a camisinha da marca "Skyn". Não querendo fazer propaganda, mas já fazendo... ela é maravilhosa! Fina, lubrificada na medida certa e sem látex (excelente para quem tem alergia), ela é praticamente imperceptível durante a relação - o que até causa certo medo nas primeiras vezes, rs. O boy também aprovou a Skyn e está tudo certo! Esse é o primeiro e único método contraceptivo que estamos utilizando no momento. Estou pesquisando mais sobre o diafragma e fico triste por ver como existem poucas informações sobre ele no Brasil. As mulheres que estão utilizando este método relatam a dificuldade de aceitação pelos/as ginecologistas e da obtenção de informações sobre tamanhos e forma de utilização. Apesar das dificuldades, este é um método que aparenta ser prático, relativamente de baixo custo, e que pretendo estudar um pouco mais. Outros métodos que tenho pesquisado são os de Percepção da Fertilidade e o Billings. Esses são métodos naturais que procuram identificar o período fértil e a ovulação através da percepção do muco cervical e da temperatura basal. A Percepção da Fertilidade e o Método Billings requerem estudos aprofundados para que possam ser bem utilizados, dessa forma, ainda estou procurando mais materiais sobre o assunto, para que possa conciliar com o uso da camisinha ou do próprio diafragma, futuramente. Outro método que tenho visto bastante é o DIU, especificamente o DIU de cobre que não possui liberação de hormônios, no entanto, não estou me aprofundando nas leituras sobre o DIU, pois acredito que a combinação dos métodos citados anteriormente pode ser muito eficiente para a prevenção da gravidez. 

Efeitos "colaterais": coloquei a palavra colaterais entre aspas, pois acredito que os efeitos causados pela interrupção do uso do anticoncepcional são muito mais naturais e consequentes do uso que fiz anteriormente. A primeira diferença que notei foi no humor: parece que nesse último mês meu humor está mais leve e mais "sincero", me sinto mais feliz e disposta no dia-a-dia e não notei os sintomas da TPM, que sentia quando tomava anticoncepcional. A segunda diferença foi em relação as espinhas: eu sempre tive uma quantidade razoável de espinhas e, especialmente, cravos, no entanto elas nunca foram "resolvidas" com o uso do anticoncepcional. Há uns dois anos atrás fiz exames para descobrir a causa delas e o diagnóstico da ginecologista, na época, foi de que as espinhas apareciam devido ao stress. Dessa forma, nesse primeiro mês sem usar anticoncepcional, notei que minha pele está um pouco mais oleosa e a quantidade de cravos aumentou um pouco, principalmente durante o período menstrual, no entanto, não é nada severo, nem que me faça querer voltar a tomar a pílula. A terceira diferença, essa sim negativa, tem relação com a cólica: eu estou sentindo muita cólica! Quando tomava anticoncepcional quase não tinha sintomas antes de menstruar, no máximo uma dor de cabeça leve. Como pretendo iniciar um processo de desmedicalização mais intensivo também não estou tratando a cólica com remédios, apenas com essa bolsa de ervas maravilhosa (foto) que comprei na lojinha on-line "Velcro", aqui em Curitiba (caso se interesse pelo produto é só clicar aqui). Além disso, tenho a receita de dois chás para cólica que pretendo experimentar em breve.



A princípio era isso que tinha para contar. A partir das experiências que estarei vivendo nos próximos meses pretendo relatar as novidades e as descobertas que estarei fazendo. 

Acredito que o mais importante é que estou feliz com meu corpo e com as novas experiências que tenho vivido. Sentir-me assim é essencial para que possa continuar nesse processo!

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Redução da maioridade penal como solução para a violência no Brasil? Santa e doce ignorância!


Sim, eu sou Assistente Social, sim, eu sou militante, sim, eu luto pelos Direitos Humanos. Não, eu não “passo a mão” na cabeça de bandido, não, eu não acredito que pessoas que cometeram crimes não devam ser responsabilizadas por isso. E sim, eu sou contra a redução da maioridade penal!

Adolescentes com 16, 17 anos estão em fase de desenvolvimento, ainda em processo de escolarização e início de uma trajetória profissional. Que tipo de argumento é esse, que as pessoas favoráveis a redução da maioridade penal usam, alegando que um menino ou uma menina de 16 anos “sabe muito bem o que está fazendo”? Eles/elas podem saber e podem não saber! Assim como vejo pessoas com 30, 50, 60 anos, que cometem atos dos mais diversos graus de violência e complexidade, e parecem não saber o que estão fazendo. O fato de você achar que essa pessoa já tem consciência da gravidade dos seus atos não justifica a redução da maioridade penal e, mais importante do que isso, o fato de adolescentes serem presos com 16 anos, não significa a redução da violência no país!


Adolescentes em conflito com a lei podem ser “punidos” com seis diferentes formas de medidas socioeducativas, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu Capítulo IV, seção I, Art. 112: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semi-liberdade; internação em estabelecimento educacional; e inclusão em medidas de proteção (conforme Art. 101). Adolescentes já são punidos pelos seus atos e, nos casos mais graves ou em situações de reincidência, sofrem medidas de restrição de liberdade que podem ter duração de até 3 anos.

Infelizmente, as instituições onde esses meninos e meninas cumprem as medidas de privação de liberdade não são as mais adequadas e, muitas vezes, sofrem com situações de superlotação e espaços físicos precários (como também vemos acontecer na maioria dos presídios brasileiros). Mas elas existem e, apesar de toda fragilidade, garantem (ou deveriam garantir) o atendimento adequado a esses adolescentes, para que direitos básicos como saúde e educação não sejam violados e para que a reinserção na sociedade seja mais afetiva.

Esse espaço existe, com a proposta de um trabalho diferenciado, para que o resultado seja melhor, tanto para o adolescente quanto para a sociedade, mas o que vemos no nosso país, atualmente, são políticos que não lutam pela continuidade desse atendimento, não lutam pela oferta de educação, saúde, lazer, cultura e formação profissional para nossas crianças e adolescentes, não lutam pela garantia dos direitos dispostos no ECA, para que alcancem toda a população de 0 a 17 anos. O que vemos são políticos, e uma sociedade civil preconceituosa e imediatista, querendo jogar para baixo do tapete um problema de pobreza e desigualdade social que é estrutural. Políticos e pessoas comuns que preferem “lutar” pelo encarceramento de adolescentes, pelo aumento da população nos “depósitos de gente” que já são nossos presídios, achando que essa atitude poderá ser capaz de resolver o problema da violência no Brasil. Santa e doce ignorância!


Por que ninguém se preocupa com a condição de vida da família e da comunidade de onde é a origem da maioria dos adolescentes em conflito com a lei? Por que ninguém se preocupa com a mãe que, após ser abandonada pelo “marido”, precisa trabalhar e criar 3, 4, 5 filhos/as sozinha? Por que ninguém pensa que, enquanto ela trabalha como babá na casa de outra família, os/as filhos/as dela estão, muitas vezes, sozinhos/as? Por que ninguém culpabiliza o traficante que alicia essas crianças e adolescentes? Por que adolescentes de famílias ricas que, muitas vezes cometem crimes iguais ou piores que adolescentes pobres, não sofrem o mesmo tipo de punição? Por que ninguém se preocupa com a qualidade da saúde e do ensino público? POR QUE NINGUÉM, NENHUM POLÍTICO, ESTÁ BRIGANDO PARA QUE OS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES SAIAM DO PAPEL? 

Um país melhor, com baixos índices de violência, é construído a partir de políticas públicas que garantam direitos e não de medidas punitivas, para cidadãos cada vez mais novos, que apenas privem-os de liberdade, num sistema carcerário falido e perpetuador de práticas de violência. Um país melhor se faz com distribuição de renda e garantia de direitos. Um país melhor se faz escutando o que nossas crianças e adolescentes têm para nos dizer e, principalmente, RESPEITANDO-AS/OS!

Referências:

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/04/pela-ampliacao-da-maioridade-moral.html

http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1430

sexta-feira, 6 de março de 2015

Mais um 8 de março... o que temos para comemorar?


Eis que chega mais um 8 de março... a televisão, as lojas e as ruas já estão cheias de mensagens “parabenizando” as mulheres pelo seu dia. O comércio aposta nas promoções de anticoncepcionais, cosméticos e roupas. E os homens... ah os homens! Eles mandam flores e compram chocolates para suas esposas, namoradas, mães e irmãs.

Lindo, não?
NÃO!

Todos sabemos a origem desse 8 de março, do Dia Internacional da Mulher. Sabemos que em 1857, em uma fábrica têxtil de Nova Iorque, operárias uniram-se e fizeram uma grande greve, reivindicando melhores condições de trabalho, equiparação de salários e a diminuição da carga horária. Temos conhecimento também de como essas mulheres foram tratadas, como foram duramente reprimidas, trancadas dentro da fábrica onde trabalhavam, que posteriormente foi incendiada. E todos nós sabemos como essa história de luta por direitos terminou: com, aproximadamente, 130 operárias mortas. Todos nós sabemos de tudo isso, aprendemos na escola ou temos conhecimento por outras fontes, mas poucos de nós LEMBRAMOS dessa história. A mídia e as grandes empresas não fazem questão de que lembremos da origem e do significado do Dia Internacional da Mulher. Os homens não procuram refletir sobre o porquê dessa data e a situação da mulher atualmente. As pessoas não se importam! Menos... Sim! Menos nós, as feministas “chatas”.

Voltando ao ano de 2015, começamos a nos perguntar: o que temos para comemorar? A mulher, na sociedade brasileira atual, já é plenamente respeitada e tem todos os seus direitos garantidos, e pode esperar de um dia como esse apenas flores, promoções e chocolates? Convenhamos que não... 
 
Num país onde uma mulher é estuprada a cada 12 segundos, onde não temos segurança para andar na rua com a roupa que queremos, no horário que bem entendemos, onde somos violentadas e desrespeitadas dentro e fora de casa, onde homens acreditam que estão fazendo um elogio às mulheres quando gritam “gata”, “gostosa”, “queria te comer todinha”, entre outras coisas piores. Num país que não garante às mulheres nem mesmo o direito ao seu próprio corpo, condenando aquelas que optam por abortar, julgando-as e, em alguns casos, tornando-as criminosas, onde mulheres ainda recebem menos e trabalham mais que os homens, onde são objetificadas e sexualizadas, utilizadas como “iscas” para vender produtos e satisfazer interesses masculinos. Num país como esse, as mulheres que vivem nele não têm o que comemorar! 

  
Diante de tudo isso, querida mídia, queridas empresas, querido comércio e queridos homens, não pensem que vocês podem nos comprar com seus descontos e seus produtos, com elogios e mensagens, com flores e bombons. Nós não nos contentamos com uma sociedade que usa um dia do ano - e desconsidera todo o seu significado de origem - para nos “agradar”, mas que nos maltrata e nos desrespeita durando os outros 364 dias. Não pensem que vocês conseguirão nos calar e nos diminuir!

Nesse 08 de março e em todos os outros dias do ano, enquanto existirem mulheres tendo seus direitos negados, NÓS NÃO TEREMOS O QUE COMEMORAR!

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*Por mais que eu também não tenha o que comemorar nesse dia, eu gostaria de deixar meu agradecimento e meu reconhecimento aos grupos feministas que participo e às mulheres maravilhosas que conheci nos últimos anos. Se existe um pouco de felicidade e esperança nesse 08 de março, esses sentimentos se devem a esses espaços e a essas mulheres que lutam por seus direitos e pelo bem estar de todas. As rivalidades sendo rompidas, o reconhecimento de que somos irmãs e precisamos nos unir e a sororidade não me deixam perder a esperança de um mundo melhor para todas nós!

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Referências:

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O MUNDO

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Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir ao céus.
Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. 
- O mundo é isso - revelou. - Um montão de gente, um mar de fogueirinhas.
Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.

(O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano, página 13)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

A ORIGEM DO MUNDO

A guerra civil da Espanha tinha terminado fazia poucos anos, e a cruz e a espada reinavam sobre as ruínas da República. Um dos vencidos, um operário anarquista, recém-saído da cadeia, procurava trabalho. Virava céu e terra, em vão. Não havia trabalho para um comuna. Todo mundo fechava a cara, sacudia os ombros ou virava as costas. Não se entendia com ninguém, ninguém o escutava. O vinho era o único amigo que sobrava. Pelas noites, na frente dos pratos vazios, suportava sem dizer nada as queixas de sua esposa beata, mulher de missa diária, enquanto o filho, um menino pequeno, recitava o catecismo para ele ouvir. 
Muito tempo depois, Josep Verdura, o filho daquele operário maldito, me contou. Contou em Barcelona, quando cheguei ao exílio. Contou: ele era um menino desesperado que queria salvar o pai da condenação eterna e aquele ateu, aquele teimoso, não entendia.
- Mas papai - disse Josep, chorando -, se Deus não existe, quem fez o mundo?
- Bobo - disse o operário, cabisbaixo, quase que segredando. - Bobo. Quem fez o mundo fomos nós, os pedreiros. 

(O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano, página 14)

ADENDO

Há mais ou menos um ano descobri que tenho um amor platônico por um ser humano, jornalista e escritor chamado Eduardo Galeano, por isso pretendo encher o blog com os textos profundos e encantadores dele.